Dulcinei Carneiro Ortiz
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados
Um dos desdobramentos mais importantes do casamento é com certeza o estabelecimento do regime de bens a ser adotado pelos cônjuges após a sua celebração e que uma vez fixado pela lei ou escolhido regerá as relações patrimoniais entre marido e mulher enquanto perdurar o casamento.
Em nosso país são quatro os regimes de bens disponibilizados aos nubentes pela lei: (i) comunhão parcial de bens, (ii) separação de bens (convencional ou obrigatória), (iii) comunhão universal de bens e (iv) participação final nos aquestos.
Se o regime escolhido pelos nubentes for o de comunhão parcial, por ocasião da habilitação para o casamento, reduzir-se-á a termo a opção escolhida e nas demais escolhas a sua formalização se dará por escritura pública de pacto antenupcial.
A restrição ao princípio da livre escolha do regime de bens pelos nubentes e, por óbvio, de sua alteração, encontra-se prevista no artigo 1.641 do Código Civil. Segundo este artigo, “é obrigatório o regime da separação de bens no casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; da pessoa maior de setenta anos e de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”.
Ressalta-se que não são esses os únicos regimes possíveis de serem adotados pelos nubentes. Através de pacto antenupcial poderão estipular um regime próprio e particular que regerá a suas relações econômicas e patrimoniais após o casamento, desde que esta convenção não viole a lei, a ordem pública e os princípios e deveres do casamento.
Uma vez escolhido o regime de bens, em princípio, este será imutável e irrevogável não só para garantir o interesse dos cônjuges como o de terceiros.
Contudo, esta imutabilidade não é absoluta e pode ser alterada por autorização judicial (Art. 1.639, § 2°, do Código Civil), desde que preenchido ainda os seguintes requisitos legais: (i) pedido de ambos os cônjuges; (ii) ) motivação da pretensão; (iii) ressalva dos direitos de terceiros; (iv) procedência das razões invocadas.
Dessume-se do primeiro requisito que somente os cônjuges têm legitimidade para requerer a modificação do regime de bens, o que significa dizer que não poderão fazê-lo unilateralmente. É cediço que a discordância de um deles não poderá ser suprida pelo juiz.
Além do requerimento conjunto, exige a lei que o pedido seja motivado, ou seja, não basta a simples manifestação de vontade dos cônjuges, necessário seja ele fundado em razões de fato e de direito. Embora a lei não especifique as causas que autorizam a modificação do regime de bens, as razões devem ser legítimas, não podendo contrariar a lei, a moral e os bons costumes. É importante que as razões e justificativas declinadas na inicial possam convencer o juiz da plausibilidade do pedido.
Os interesses dos próprios cônjuges devem ser resguardados (não provocar vantagens para um em detrimento do outro) e não poderá prejudicar terceiros, diminuindo-lhes inclusive eventuais garantias.
Por fim, exige-se a demonstração da procedência das razões invocadas, com produção de prova dos fatos alegados, especialmente prova documental, como, por exemplo, apresentação de certidões negativas de cartórios distribuidores da Justiça Comum, Federal e Trabalhista e cartórios de protestos, avaliação de bens, etc. As provas testemunhal e pericial são admissíveis.
O procedimento nas ações de modificação de regime de bens é de jurisdição voluntária (art. 1.103 a 1.111, do CPC). Devem ser citados todos os interessados, incluindo-se os credores conhecidos e indicados pelos cônjuges na inicial e, se o caso, as pessoas jurídicas de Direito Público. Se os cônjuges forem comerciantes, com estabelecimentos comerciais em vários locais, aconselha-se a citação por edital de interessados incertos e não sabidos. O prazo para impugnação da pretensão é de 10 (dez) dias.
No processo intervirá necessariamente o Representante do Ministério Público, pela natureza da lide e o interesse público inerente à pretendida mudança na regulamentação das regras patrimoniais dos cônjuges.
A sentença que autoriza a modificação do regime de bens, após seu transito em julgado, deverá ser averbada à margem do assento de casamento e, se o caso, registrada no fólio imobiliário competente. Sendo os cônjuges comerciantes é necessário o arquivamento e averbação da sentença no Registro Público de Empresas Mercantis (Junta Comercial), por força do disposto no artigo 968, inciso I, do Código Civil.[1] Não há necessidade de que ela seja publicada, por edital, em jornal oficial ou local de grande circulação, para produzir efeitos contra terceiros.[2]
Um dos aspectos mais controvertidos na doutrina e jurisprudência relaciona-se com o termo inicial dos efeitos da sentença que autoriza a modificação do regime de bens: se retroage a data do casamento (eficácia ex tunc) ou se produz efeitos a partir do transito em julgado da decisão (eficácia ex nunc).
Encontram-se entendimentos em ambos os sentidos. Para aqueles que defendem a eficácia ex nunc, ou seja, a sentença só produziria efeito a partir do seu trânsito em julgado, a justificativa está no fato de que se deve preservar o interesse jurídico dos cônjuges e de terceiros no momento da celebração do casamento, em suma, respeitar os efeitos do ato jurídico perfeito. [3]
Para os que comungam entendimento contrário (eficácia ex tunc) a retroatividade da decisão à data do casamento é consequência lógica da alteração do regime de bens.
A propósito do tema vale trazer à baila a elucidativa explicação de LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, Desembargador da Sétima Câmara Cível do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, manifestado no voto que proferiu nos autos da Apelação n. 70006423891[4], no seguinte sentido:
[…] O Código não explicita se os efeitos da alteração serão “ex tunc” ou ex nunc” entre os cônjuges (porque com relação a terceiros que já sejam portadores de direitos perante o casal, é certo que serão sempre “ex- nunc”, uma vez que se encontram ressalvados os direitos destes). No particular, considero que se houver opção por qualquer dos regimes que o código regula, a retroatividade é decorrência lógica, pois, p. ex., se o novo regime for o da comunhão universal, ela só será UNIVERSAL se implicar comunicação de todos os bens. Impossível seria pensar em comunhão universal que implicasse comunicação apenas dos bens adquiridos a partir da modificação. Do mesmo modo, se o novo regime for o separação absoluta, necessariamente será retroativa a mudança, ou a separação não será absoluta! E mais: se o escolhido agora for o da separação absoluta, imperiosa será a partilha dos bens adquiridos até então, a ser realizada de forma concomitante à mudança de regime (repito: sem eficácia essa partilha com relação a terceiros). Assim, por igual quanto ao regime de comunhão parcial e, até, de participação final nos aquestos. Entretanto, face ao princípio da livre estipulação (art.1.639, “caput”), sendo possível estipular regime não regrado no código, a mudança poderá, a critério dos cônjuges, operar-se a partir do trânsito em julgado da sentença homologatória, caso em que teríamos a criação de um regime não regrado no CC.
(TJ-RS, APL: 70006423891, Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 13/08/2003)
A guisa de conclusão a mim me parece que a melhor orientação é a que reconhece o efeito ex tunc da sentença – vigência a partir da data da celebração do casamento, uma vez que a retroatividade, no caso, em nada prejudicara os interesses de terceiro, porque estes já estão juridicamente protegidos (Art. 1.369, § 2º, do CC).
Ademais, nas situações pontuadas pelo ilustre desembargador LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, impõe-se a efetivação de partilha dos bens, a ser realizada concomitantemente com a modificação do regime de bens, estando, assim, também resguardados os interesses patrimoniais dos cônjuges, porque a divisão, necessariamente, terá que ser amigável.
[1] Art. 968. A inscrição do empresário far-se-á mediante requerimento que contenha:
I – o seu nome, nacionalidade, domicílio, estado civil e, se casado, o regime de bens;
[2] STJ, RE: 776.455 RS, (2005/0140251-4) Relator: Min. Raul Araújo, Data de Julgamento: 17/04/2012.
[3] STJ, RE: 1.300.036 MT, (2011⁄0295933-5) Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Data de Julgamento: 13/05/2014.
[4] Data Julgamento: 13/08/2003. Acórdão citado pelo advogado J.MACEDO BITTENCOURT, em artigo publicado em 26 de junho de 2006.
BITTENCOURT, J. Macedo. Alteração do regime de bens do casamento. Migalhas:[S.l.], 26 jun. 2006. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI26458,41046-Alteracao+do+regime+de+bens+do+casamento>. Acesso em: 12 maio 2015.