ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS IMÓVEIS À LUZ DO ARTIGO 53 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Fábio Silveira Bueno Bianco
Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados

O presente artigo tem como objeto a investigação do cabimento, ou não, da restituição das parcelas pagas na hipótese de inadimplemento de contratos de concessão de crédito lastreados em pacto adjeto de alienação fiduciária de bens imóveis, em especial, diante das disposições aparentemente antagônicas da Lei 9.514/97 e o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. O artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor prevê que:

Artigo 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. (grifo nosso)

Pois bem, o objetivo maior do artigo 53 é a vedação ao enriquecimento ilícito. Ao comentar o referido artigo Rizzatto Nunes pondera que “é inadmissível que se possa pensar que alguém adquira um bem por certo preço, pague parte dele – por vezes grande parte – e, por não poder pagar mais, fique sem o bem e sem o dinheiro que adiantou” (NUNES, 2005, p. 590).

Todavia, na alienação fiduciária com a transferência da propriedade resolúvel ao credor fiduciário e os céleres mecanismos extrajudiciais de execução da garantia, na hipótese de inadimplemento, não raras vezes ocorrem a situação acima descrita.

De acordo com a Lei nº 9.514/97 que regulamenta a Alienação Fiduciária de Bens Imóveis, na hipótese do credor fiduciário obter êxito na venda do imóvel alienado em garantia fiduciária em um dos leilões extrajudiciais, deverá devolver apenas o valor que exceder ao pagamento da dívida e demais acréscimos legais (§4º do artigo 27). Em alguns casos pode ocorrer do credor fiduciário ofertar o próprio crédito como lance e arrematar ou adjudicar o bem pelo valor da dívida, em segundo leilão. Nesse caso, considerando que não há o controle judicial do ato expropriatório e também não há qualquer orientação legal quanto a eventual preço vil desta arrematação, certamente não sobejará nenhuma importância.

Da mesma forma, aparentemente contrariando a proibição do Código de Defesa do Consumidor, o §5º do artigo 27 da Lei 9.514/97, prevê a exoneração do credor fiduciário no que toca à devolução do valor excedente, caso o bem não seja vendido nos leilões extrajudiciais. Destarte, novamente, o procedimento da Lei da alienação fiduciária supostamente contraria a previsão de proibição de perda das parcelas pagas.

Não há, desta forma, nenhuma disposição na Lei 9.514/97 que obrigue o credor fiduciário a devolver as parcelas pagas ou parte delas. Pelo contrário, o texto legal orienta para a exoneração do credor da obrigação de restituir o excedente. Como bem observaram os juristas Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, o §4º do artigo 27, traz na sua redação a menção expressa a “recíproca quitação”, deixando claro e evidente que a devolução deverá ocorrer apenas do valor maior arrecadado e não de parte das parcelas pagas, conforme orientação da legislação consumeirista (RESTIFFE NETO, RESTIFFE, 2009, p. 115).

O artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, faz menção expressa à alienação fiduciária, sendo certo que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras é assunto pacificado no Superior Tribunal de Justiça que possui entendimento sumulado no sentido de ser totalmente aplicável (Súmula 297).

Posto isso, necessário se faz investigar se realmente existe a aparente contrariedade entre a previsão do artigo 53 e dos procedimentos extrajudiciais da alienação fiduciária de bens imóveis.

Para Melhim Namem Chalhub, as disposições da Lei 9.514/97 são coerentes com a vedação do Código de Defesa do Consumidor, considerando a natureza do contrato de mútuo (artigo 586 do Código Civil) e a previsão de devolução dos valores que sobejarem quando da realização dos leilões (CHALHUB, 2006, p. 334).

Na linha de pensamento de Chalhub, o raciocínio para a solução deve considerar também as regras de hermenêutica das normas de regência da matéria. Isso porque a Lei que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis é posterior à Lei 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.

Ainda, deve ser considerado o fato de que a Lei da alienação fiduciária é especial e o Código de Defesa do Consumidor, no caso do artigo 53, trata-se de norma geral  (CHALHUB, 2006, p. 327):

De outra parte, em relação a leis especiais como, por exemplo, a Lei 9.514/97, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, o CDC é lei geral, devendo ser vista sob a perspectiva dos princípios de equidade e boa-fé, que incidem sobre quais quer relações contratuais e não sob a perspectiva de norma peculiar sobre determinada espécie de contrato.

Desta forma, a Lei 9.514/97, por ser lei especial na medida em que regula um negócio jurídico específico, deve prevalecer sobre o Código de Defesa do Consumidor que, nesse aspecto, empresta apenas os princípios gerais de equidade e boa-fé, aplicáveis a todos os contratos.

Corroborando com esse entendimento, Nelson Nery Júnior, ao comentar o artigo 53, ensina que o comando legal do Código de Defesa do Consumidor sintetizou a aplicação dos princípios da ética, boa-fé, equidade e equilíbrio em relação às situações de resolução contratual por inadimplemento (NERY JÚNIOR, 2011, p. 638).

Com efeito, embora pareça ser incontestável o raciocínio jurídico da aplicação apenas em caráter geral e principiológica do comando do Código de Defesa do Consumidor com a consequente preservação total das especificidades da execução extrajudicial previstas pela Lei 9.514/97, tal solução, nos parece, que não resolve toda a problemática na prática.

O fato é que por não haver previsão legal ou qualquer balizamento quanto ao chamado preço vil para a realização do segundo leilão extrajudicial[1], não raras vezes os imóveis são arrematados pelos próprios credores fiduciários, e, após descontados todos os encargos, nenhuma importância é sobejada. Nesse caso o devedor perderá todas as parcelas pagas e ainda o bem imóvel, situação esta afastada pelo artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor.

Da mesma forma, injustiças podem ocorrer quando não há interessados na compra do imóvel alienado, por ocasião do segundo leilão, situação em que o credor fiduciário ficará com o imóvel, sendo exonerado da obrigação de devolver eventual diferença, declarando-se extinta a dívida, com quitação recíproca.

Ao abordarem o assunto Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe propõe uma solução que segue no sentido de que haveria a necessidade de apuração, através de cálculos, de eventual necessidade de ressarcimento de quantias pagas.

Nessa linha, a interpretação deve ser congruente, devendo sempre beneficiar o consumidor e impedir que haja o enriquecimento sem causa do credor. Vejamos a conclusão (RESTIFFE NETO, RESTIFFE, 2009, p. 116):

Daí ser cabível, sempre a apuração completa de valores, em qualquer situação pós-leilões. A extinção ex lege da dívida do fiduciante não tem como recíproca a extinção ex lege do seu direito a receber eventual sobejamento: nem devolução total, nem perda total; só devolução parcial do eventual sobejo apurado.

Rizzatto Nunes também conclui pela necessidade de investigação caso a caso, em razão das diversas peculiaridades envolvidas, utilizando-se do método de interpretação lógico sistemática, invocando os princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual, o princípio da equivalência contratual, a boa-fé objetiva como cláusula geral e a equidade (NUNES, 2005, p. 594).

Assim, mesmo que considerando os diferentes pontos de vista, é possível verificar que existe um certo consenso entre os Doutrinadores pesquisados no sentido de que o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor é sim aplicável ao instituto da alienação fiduciária de bens imóveis, como regra geral de distribuição de justiça, preservando-se como válidos, todavia, os céleres e eficazes procedimentos previstos na Lei 9.514/97.

Nesse diapasão, parece-nos mais correta a orientação no sentido de ser necessária a análise isolada, caso a caso. Num primeiro momento, haverá necessidade de investigar se o pacto adjeto da alienação em garantia foi firmado no âmbito de uma relação de consumo (fornecedor e consumidor); e no segundo, se houve efetivamente a mitigação dos princípios aplicáveis capaz de autorizar a imposição ao credor fiduciário de devolver parte das parcelas que recebeu e não somente do valor que sobejar do leilão.

REFERÊNCIAS 

ALVES, José Carlos Moreira. Da Alienação Fiduciária em Garantia. São Paulo: Saraiva, 1973.

BRASIL. (Presidência da República). Lei nº 9.514 de 20 de novembro de 1997. Disponível em: <HTTP://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm>. Acesso em: 03 mai. 2013.

CHALHUB, Malhim Namem. Negócio Fiduciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. IV. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

FRAZOLIN, Cláudio José, et al. Direito Imobiliário Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2011.

GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. v. I. 10. ed. Rio de Janeiro:Forense, 2011.

NUNES, Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Propriedade Fiduciária de Imóvel. São Paulo: Malheiros, 2009.

 


[1] O preço mínimo da venda do imóvel alienado fiduciariamente no segundo leilão está estipulado pelo parágrafo segundo, do artigo 27, que prevê: “No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.”

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