Maria Thereza dos Santos Pereira
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados
Trata-se de resumo sobre a importância na confiança entre as partes de um negócio jurídico antes do surgimento da obrigação pela declaração de vontade das partes, o que demanda preparação de todos os envolvidos em conhecimentos técnicos acerca do objeto do contrato, em direito para a formalização e habilidades em negociação, para que finalmente o instrumento seja considerando mais do que legal: um contrato justo.
Desde meados de 90, vivemos a “Crise do Negócio Jurídico”, pois as teorias clássicas que abrangem os negócios jurídicos não tratam em detalhes os contratos em que a vontade se encontra mitigada, como contratos de adesão, que mesmo com desigualdades com relação à perda de autonomia, são considerados válidos e eficazes.
O intuito não é descredibilizar tais teorias, pois não estão erradas, porém desatualizadas ou não adaptadas totalmente à sociedade atual, segundo vem demonstrando alguns autores ao realizarem a releitura, tais como Clóvis do Couto e Silva, Cláudia Lima Marques e Enzo Roppo, que trazem uma abordagem doutrinária dessa nova fase dos contratos do século XXI, para destacar a importância da proteção da confiança, indicando conversão do Direito Contratual, posto por um Estado liberal que valoriza demasiadamente a autonomia da vontade, para um Estado com objetivos mais sociais ante uma sociedade mais globalizada, que demanda uma ideologia com mais flexibilidade para concretizar-se o que é justo.
Nesse sentido, ensina Schmidt Neto (2019):
“Uma teoria contratual em que a supremacia da vontade individual dá lugar à legitimação da liberdade econômica adaptada às novas condições do capitalismo. Defende a proteção aos contratantes mais fracos e a relativização da obrigatoriedade não apenas por questões de equidade e justiça, mas como tutela do próprio funcionamento do mercado, uma vez que empresários eficientes devem prevalecer não pelo abuso de sua posição dominante, mas ‘pelo melhoramento da qualidade e diminuição do preço dos produtos, pela inovação tecnológica, pela redução dos custos internos e pela racionalização dos processos produtivos e distributivos”
O que se vê na prática é que situações mercadológicas geram obrigações sem que o Direito justifique teoricamente o que se vive na realidade social, visto que contratantes impõem preços e cláusulas que podem ser consideradas abusivas, sem discussão, já que todos os outros fornecedores do mesmo ramo de atuação o fazem da mesma forma sob justificativa da natureza de sua prestação, restando ao contratado poucas oportunidades de negociação, que acaba por aceitar as condições com apenas um “click”.
Neste contexto, percebe-se que o elemento definidor do negócio jurídico seriam as circunstâncias mercadológicas, não mais a vontade.
No ordenamento vigente, presume-se que a declaração de vontade seja o resultado de um processo volitivo anterior e incorporada ao negócio jurídico. No entanto, no cenário atual é retirada a importância central da vontade do núcleo do suporte fático, deslocando o foco para as demais circunstâncias mercadológicas, que pouco aborda sobre confiança na negociação e expectativas do contratado.
Numa sociedade capitalista, de relações massificadas, minada pelo consumo exacerbado, marketing, publicidade que encantam os consumidores, conduzindo-os a contratos padronizados, nos quais a vontade é drasticamente limitada, parece certo os doutrinadores contemporâneos defenderem que o nascimento da obrigação advém pela “confiança nas circunstâncias negociais”, não necessariamente a declaração de vontade.
Destarte, a declaração não pode ser mais o único aspecto a ser avaliado pela ciência dos contratos, há de se entender melhor a organização teórico dogmática do direito como um todo, posto que a regra fora criada num ambiente liberal, em período que a vontade ainda tinha a importância central que hoje divide com os demais princípios e que pode incluir o aspecto acima mencionado (confiança nas circunstâncias negociais). A proteção da confiança na fase de negociação é fundamental para a concretização a justiça no direito dos contratos.
Em que pese necessitarmos de regras em nome da segurança jurídica, posto que regra objetiva interesses, por outro lado sua aplicação pura e simples pode promover injustiças na prática.
“A teoria da confiança tem por principal escopo a defesa das legítimas expectativas que nascem entre os contratantes, quando pactuadas as obrigações que mutuamente são assumidas, criando entre ambos um vínculo contratual” Consagrada no Código Civil de 2002, a teoria da confiança, pode-se afirmar que na interpretação das diversas cláusulas de um contrato, devem-se considerar vinculantes os deveres que, manifestados pelas partes, suscitam em ambas uma compreensão comum quanto ao conteúdo da declaração. Assim, a valorização da confiança é relativamente recente no ordenamento jurídico pátrio, o que provoca falta de rigor técnico ou dogmático (SCHMIDT, 2019).
Como os princípios representam valores e são mandamentos de otimização, já que visam dar norte para a aplicação das leis e permitem sua flexibilização na aplicação do Direito na medida que promovem a adequação da regra ao caso concreto, surge a subjetividade, o que demanda trabalho intensivo sobre aqueles que vão operar o Direito.
Fernanda Tartuce (2016) ensina que alguns fatores culturais podem ser considerados, todavia, o apreço do nosso sistema e de nossos profissionais por leis escritas pode suscitar um maior interesse pelo assunto. Ainda assim, para a efetiva operacionalização formação do profissional tem que ser mais ampla e prática, para desenvolvimento de habilidades concernentes à resolução consensual de problemas, o que constitui o aparato diferencial importante para um profissional em cenário competitivo. Nas palavras da autora no contexto de mediação:
“Para que mudanças significativas possam ocorrer em termos qualitativos, a mera existência de leis é insuficiente: é essencial que o profissional do Direito entenda que uma de suas principais funções e não só representar e patrocinar o cliente (como advogado, defensor e conselheiro), mas também conceber o design de um novo enquadre que dê lugar a esforços colaborativos.”
Isso implica dizer que se pode discutir sobre as regras positivadas e suscitar uma atualização legislativa dificilmente mudará uma cultura e, sim, a preparação das pessoas nesse sentido. Especificamente no âmbito do Direito, o que tem que ser alterado é a mapa filosófico do advogado sobre a falta de boa-fé da outra parte, o que não é ensinado na faculdade.
Essa crise de desconfiança do Direito e seus instrumentos devem sem combatidas com meios que reforcem a confiança dos indivíduos na efetiva realização de suas expectativas legítimas, o que pode ser desenvolvida como habilidade em negociação ou aquilo que no mundo corporativo é classificada como “soft skill”.
Técnicas de negociação sequer poderiam estar no ordenamento jurídico, pois são abertas e flexíveis, dependendo muito mais de preparação e atenção das pessoas envolvidas, do que de uma lei, o que não se adquire apenas com o estudo dogmático da norma.
Há diversas estratégias de negociação e muitos livros sobre o assunto para preparação. Neste estudo, compartilha-se uma estratégia tratada como um case de sucesso em livro sobre gestão de negócios de Bazerman (2016), que é justamente o fortalecimento da confiança e compartilhamento de informações entre as partes:
“Nesse caso, é necessário somente conhecimento básico de aritmética para determinar o resultado que maximiza o benefício conjunto. Infelizmente, isso é muito mais fácil de dizer do que fazer. Durante negociações, executivos geralmente tendem a desconfiar do outro lado e creem que uma estratégia como essa pode entregar informações vitais (tais como preços de reserva). Segundo eles, isso poderia reduzir suas vantagens na dimensão distributiva da negociação. Mas, se o objetivo é maximizar interesses conjuntos, a partilha de informações é a forma ideal de duas organizações analisarem a tarefa. Isso garante que não sobrará qualquer dólar na mesa, pois os dois lados discutem sobre como melhor dividir a torta de recursos. O benefício gerado pelos lucros conjuntos extras geralmente supera o ganho distributivo que um lado possa obter ao empregar táticas mais competitivas. Além disso, compartilhar informações ajuda a criar um relacionamento positivo entre os dois lados, algo extremamente necessário para um joint-venture contínuo. Em empreendimentos conjuntos ou quaisquer negociações intraorganizacionais, a troca de informações deveria ser a estratégia central”. – (grifos propositais)
Assim, entende-se que as partes podem trocar informações, inclusive sigilosas, para ambas obterem lucros e terem suas expectativas atendidas, estabelecendo relação de confiança, antes da declaração de vontade, independentemente de leis, o que pode tornar o contrato mais justo.
Obviamente que na sociedade capitalista em que estamos existe a necessidade de uma regulamentação mínima posto que para alguém confiar em outra pessoa já é se colocar em situação de hipossuficiência, no entanto, é graças a confiança que as pessoas se movimentam em busca de uma relação com os demais. Idealmente é necessário buscar a harmonia entre o pragmatismo do pensamento capitalista, cujo foco é sabidamente o lucro, direito e confiança pré-contratual.
Ainda assim, se ambas as partes desconfiam uma da outra, podem concordar também da realização de revisão independente de todas as avaliações financeiras e jurídicas.
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Fontes:
BAZERMAN, Max H., NEALE, Margaret A. Negociando Racionalmente. São Paulo: Atlas, 2016.
SCHMIDT NETO, André Perin. Contratos na sociedade de consumo: contrato de confiança. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
TARTUCE, Fernanda. O novo marco legal da mediação no direito brasileiro. Revista de Processo. Ano 41, 258, p. 495 – 516, ago./2016.