Jayme Petra de Mello Neto
Coordenador Jurídico do Escritório Marcos Martins Advogados

Uma das grandes regiões não normatizadas no Direito Brasileiro é, sem dúvida, a que diz respeito aos processos envolvendo empresas transnacionais em crise. Conquanto tenhamos avançado significativamente ao adotar um modelo mais atualizado de “direito da empresa em crise” (já se consolidando quase como um ramo autônomo em França, como droit des entreprises en diffculté) a partir da introdução do sistema recuperacional da Lei nº 11.101/2005, um importante capítulo deste setor foi deixado de lado pelo legislador ordinário, criando um descompasso na marcha evolutiva da legislação falimentar.

Com efeito, embora contando com uma grande quantidade de atores internacionais em sua economia (global players), tanto de origem alienígena quanto local, o Brasil não tem uma sólida e corporificada legislação que abarque estas empresas, dando-lhe tratamento peculiar a sua condição. Uma ou outra regra esparsa, por vezes conflitantes entre si e sem um vetor teleológico, acabam por criar um sentido de desestímulo à presença dos global players em território nacional, vindo estes a se fixarem por aqui muito mais por força de seu projeto de expansão global do que por atratividade do país.

Este campo jurídico desregulado com relação aos global players apresenta uma maior dificuldade e insegurança a potenciais investidores estrangeiros ou a empresas brasileiras que se expandem e passam a ter estabelecimentos fora do território nacional. Em todos os momentos, os gestores de global players acabam se defrontando com dificuldades e contradições de ordem tributária, comercial, contratual e societária.

Mas é no campo do “direito da empresa em crise” que o vácuo regulatório atinge com mais clareza, deixando uma sensação de insegurança pela imprevisibilidade dos efeitos jurídicos no mais crítico momento de qualquer empresa, que em sentido lato, é a crise atrelada à sua solvência.

Lamentavelmente, a história aqui é de perda de oportunidade!

Com uma lei de falências que retratava um mundo entre guerras, incompatível com o modelo econômico vigente no início do século XXI, o Brasil se pôs a revisar seu direito das empresas em crise a partir do modelo proposto pela UNCITRAL , refletido no Legislative Guide on Insolvency Law. Datado do ano de 2004, o modelo é francamente baseado no Bankruptcy Reform Act, de 1978, nos Estados Unidos, que introduziu o modelo de reorganização, comumente referido como Chapter 11. Este padrão legislativo da UNCITRAL, que efetivamente lançou o Brasil na mesma onda que o restante do mundo, na verdade, apresentava-se como uma dupla regulação: de um lado, a regra geral de reorganização e recuperação, adotada; de outro, a regra sobre insolvência transnacional.

Também constante de uma lei modelo da Uncitral – Model Law on Cross-Border Insolvency and Guide to Enactment – os procedimentos de insolvência transnacional não foram adotados no Brasil, perdendo-se uma chance histórica, já que em 2005, havia presente o espírito de revisão do antigo modelo falimentar.

Embora existente desde 1997 como lei modelo, não existe uma justificativa sabida pela qual os autores do projeto de lei que se transformou na Lei nº 11.101/2005 não abriram um capítulo específico sobre o tema. Em 2005, o Brasil adotava um papel protagonista de investimento internacional, tendo empresas brasileiras que se expandiam e forte influxo de empresas estrangeiras que chegavam para aqui completar seus projetos de expansão e investimentos globais. Assim, o momento era propício, mas a chance foi perdida.

Segundo a própria declaração de objetivos da lei modelo, um processo de insolvência transnacional, por meio de cooperação entre autoridades judiciárias e soberanias distintas, visa (i) oferecer maior certeza jurídica para a empresa e o investimento; (ii) promover  justa e eficiente administração de insolvência transnacional que proteja todos os credores, terceiros envolvidos e o próprio devedor; (iii) a proteção e a maximização dos bens do devedor; (iv) além de facilitar a recuperação de empresas em crise, de maneira a proteger o investimento e preservar os empregos. Percebe-se que os objetivos eleitos num procedimento transnacional coincidem com os objetivos tipicamente insculpidos no artigo 47, da Lei nº 11.101/2005[1].

A insolvência transnacional deveria ser o complemento natural da Lei 11.101/2005, considerando o papel da economia globalizada na atual conformação econômica brasileira. Se há um efeito jurídico bastante relevante da globalização e da expansão comercial principalmente após a derrocada do bloco soviético, na década de oitenta do século XX, pode-se afirmar que é o desafio à noção de fronteiras da soberania, sobretudo se encarada sob a tradicional doutrina de segurança nacional, pela qual as fronteiras soberanas são muros intransponíveis.

O vetor trazido pelo alargamento econômico das fronteiras e, sem grande ousadia, pela virtualização operada com a Internet, é de que os muros cerrados devem dar espaço a um sistema eficiente de amparo jurídico que considere as peculiaridades e regionalismos de todos os envolvidos e que múltiplas jurisdições possam atuar em harmonia, reconhecendo-se mutuamente, ainda que determinados conceitos sejam estranhos para uma delas.

Este sentido de harmonização de jurisdições é o que consta da própria lei modelo sobre insolvência transnacional, que precisa ser a atuação segundo a lei, um sistema de assistência entre cortes de justiça, na busca dos objetivos enunciados.

Assistência entre cortes competentes em tese. Assistência entre jurisdições concorrentes. Tecnicamente, a condição de procedibilidade de um processo de insolvência transnacional é exatamente a possibilidade de assistência entre cortes. Entre a assistente e a assistida haverá uma relação dinâmica e eficiente para buscar maximizar os ativos do devedor localizados em sede de jurisdições, melhor dizendo, soberanias, diferentes.

A corte assistente, pelo modelo de lei, não atuará concorrentemente com o processo de recuperação que se desenvolve perante outra soberania. Baseando-se no conceito de estabelecimento principal (main establishment), a lei e corte assistente passam a reconhecer que existe um processo-chave, principal (foreign main proceedings) que determinará as principais atividades cognitivas-jurisdicionais com relação à recuperação de um devedor. À corte assistida cabe o papel de resolver e administrar a recuperação. À assistente, o papel de confirmação e proteção de bens e credores contidos sob sua jurisdição para mais justo e eficiente processo recuperacional.

Não se trata de uma abdicação do poder jurisdicional de uma soberania em detrimento de outra. O que a lei modelo prevê é um sistema em que, guardadas as diferenças regionais e de cada estado-soberano, os procedimentos de insolvência local tenham reconhecimento transnacional em benefício dos investimentos, empregos e maximização dos bens do devedor.

A própria lei modelo traz em si uma cláusula de exceção: o processo de insolvência transnacional não se aplicará quando houver manifesta contrariedade entre uma ordem ou procedimento da corte assistida com política pública na área de soberania da corte assistente.

Esta cláusula de exceção representa um recurso viável à manutenção do modelo soberano não esvaziando o papel do Poder Judiciário Local.

Contudo, uma grande dificuldade surgiria para o Direito Brasileiro em função do que venha a ser política pública para efeito dos processos de insolvência. Isto porque o conceito não tem uma definição a priori no Brasil, o que levaria a uma situação bastante peculiar. Ou a lei que instituísse a insolvência transnacional traria uma definição, ao risco de imprecisão ou de rápida desatualização; ou seria delegado ao Poder Judiciário manifestar-se sobre o que poderia caracterizar a exceção.

Retomando a fonte de inspiração da lei modelo e do atual sistema recuperacional, o Direito Norte-Americano tem uma situação bastante assentada do que seja política pública e qual a sua aplicabilidade perante o direito da empresa em crise. A despeito do conceito estar bastante assentado naquele Estado, quando da adoção do sistema de cross-border insolvency, em 2005, alguns pontos foram revistos, não para excluí-los do âmbito de apreciação das políticas públicas, mas para adaptá-los à realidade da assistência entre cortes.

Assim, o sistema de prioridades dos créditos na falência, por exemplo, é considerado uma política pública para o direito norte-americano. Regras tradicionais acerca de qual credor recebe primeiro sempre foram entendidas sob o sistema de políticas públicas. Desta forma, no direito norte-americano, há um sistema bem mais complexo sobre a preferência de determinados créditos[1].

Existe, naquele sistema legislativo, para cada espécie de credor com prioridade uma dupla verificação: a verificação de prioridade absoluta (APR – absolute priority rule) que classifica um crédito específico com relação a outro de natureza diversa, por exemplo, a prioridade do crédito dos credores debenturistas sobre os sócios; ao mesmo tempo, há a verificação de prioridade proporcional (PPR – proportional priority rule), pela qual, dentro de uma mesma espécie de credores se distinguem, em função do grau em que a prioridade é estabelecida por lei ou por contrato. Naquele sistema, é possível se emitir títulos (bonds) com lower ou higher priority, em função da negociação e da força do credor.

No Brasil, ao contrário, não existe a classificação PPR de prioridade, como regra[2]. Assim, formalmente, não haveria qualquer espécie de distinção entre o credor com lower ou higher priority. Num plano de recuperação judicial ou numa falência regida pela lei brasileira, esta regra não incidiria. Mas, caso o devedor tivesse bens sujeitos à jurisdição norte-americana e tivesse iniciado um procedimento de cross-border insolvency (o Chapter 15 do United States Code) numa corte local, esta questão poderia vir a ser discutida.

Em posição revista, para os casos de cross-border insolvency no chapter 15, as cortes americanas já aceitaram a aplicação da exceção das políticas públicas, excepcionando a regra da PPR.

No Brasil, em que o sistema de precedentes judiciais, como fonte de norma é ainda embrionário e bastante diverso do sistema assentado para os países de commom law, a adoção da cláusula de exceção de políticas públicas poderia representar um desafio e mais um fator de incerteza jurídica, que conforme dito anteriormente, é um dos objetivos a ser erradicado pela adoção de uma lei de insolvência transnacional.

Em que pesem as críticas e os pontos que precisariam ser muito bem pensados, é urgente que o Brasil adote um sistema de cross-border insolvency permitindo que se tenha maior segurança jurídica para investidores, como um fator de retomada de investimentos e crescimento.

O escritório Marcos Martins Advogados está acompanhando e participando das discussões legislativas e acadêmicas acerca do tema para garantir maior eficiência e qualidade de entrega de trabalhos a seus clientes.

[1] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[2]  Este sistema de preferências é denominado Me-first rules.

[3]  A distinção talvez pudesse se amoldar em relação a alguns direitos reais de garantia, como as hipotecas, que admitem as espécies de primeira ordem e demais graus. Fora destes casos, não existiria esta distinção.

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