DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS: O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E A TUTELA DO INTERESSE DO CREDOR

Alessandra Renata Rasquel Noronha
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados

O adimplemento substancial ocorre quando o devedor de uma relação contratual fica inadimplente nas últimas prestações do contrato e sendo a mora insignificante pela aplicação desta teoria, tem-se a impossibilidade de extinção do contrato, possuindo o credor apenas o direito de ingressar com demanda judicial para a cobrança das prestações faltantes ou pleito de indenização por perdas e danos.

Neste sentido, quando o devedor deixar de quitar as últimas prestações do contrato, o negócio firmado não poderá ser extinto; o credor poderá ingressar com ação para o recebimento dessas últimas parcelas e requerer indenização, em caso, por exemplo, de aquele valor já estar destinado para algum outro negócio jurídico e que em razão disso tenha lhe causado prejuízo financeiro e moral.

Nas palavras de Becker¹ (1993, p.60-61):

O adimplemento substancial, conforme o definiu o Prof. Clóvis do Couto e Silva, constitui “um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização” e/ ou de adimplemento de vez que aquela primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa fé.

Esta teoria é originária do Direito Inglês e conhecida como “substancial performance”, possuindo ampla aplicação no direito estrangeiro. No Brasil não existe norma que a regulamente, contudo, sua aplicação vem ganhando força pela jurisprudência e pela doutrina, que defende a sua execução desde que sejam observados os princípios que regem os contratos civis.

Quem defende a sua aplicação argumenta que pelo fato do devedor já ter adimplido grande parte da obrigação já há a garantia do bem ou da prestação de serviço, não podendo ser admitida a extinção do negócio, mas sim, apenas e tão somente a busca do credor em saldar o valor remanescente.

Por conta da ausência de disposição legal, os princípios contratuais contemporâneos como o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato são de fundamental importância, pois servem como fundamento para o reconhecimento do adimplemento substancial. Inclusive, na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado nº 361 CJF/STJ que tratou sobre a existência da teoria, o qual dispôs da seguinte forma:

O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475

Segundo o Enunciado supramencionado, diante da aceitação desta teoria o artigo 475 do Código Civil² sofreu uma pequena limitação, mas antes de comentar sobre isso, observa-se o seu teor:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Perceba-se que este dispositivo trata sobre a possibilidade de resolução do contrato em caso de inadimplemento, sendo apenas aplicado nos casos de inadimplemento voluntário ou culposo e quando inobservada a boa fé objetiva e a função social do contrato.

A observância de alguns aspectos, como a boa-fé do devedor (Artigo 422 do Código Civil) e a garantia da função social do contrato (artigo 421 CC) são de extrema importância para que esta teoria seja reconhecida, já que será analisado se o devedor até o momento do inadimplemento buscou agir com boa-fé, cumprindo grande parte do contrato nas formas e prazos fixados e se a função social do contrato e seu objeto foram alcançados.

Ainda que a teoria tenha como maior beneficiário o devedor do contrato, já que o contrato não será resolvido e o objeto dele continuará sob as mãos do devedor, esta não poderá ser aplicada se o credor também não estiver protegido, sendo analisado o seu interesse na relação, ou seja, se o contrato resultou inútil ou não para ele, respeitando também os seus fins sociais e econômicos.

Têm-se, com isso, que os requisitos para a aplicação da teoria são: 1) a existência de expectativas legítimas originadas do comportamento das partes; 2) o pagamento faltante há de ser ínfimo considerando o total do negócio; 3) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (Recurso Especial n. 76.362/MT).

Outro ponto que merece atenção, é a identificação do que efetivamente pode ser considerado como adimplemento substancial, ou seja, quais serão os parâmetros quantitativos utilizados.

Evidente que há ainda grandes debates sobre o tema, o ministro Antônio Carlos Ferreira, no julgamento do Recurso Especial³ nº 1.581.505/SC , tratou sobre dificuldade de identificar o requisito objetivo para a aplicação, assim dispondo:

Como se vê, a jurisprudência desta Corte tem oscilações no exame do requisito objetivo, o que se dá pelo fato de que, em cada caso aqui julgado, há peculiaridades muito próprias a serem consideradas para efeito de avaliar a importância do inadimplemento frente ao contexto de todo o contrato e os demais elementos que envolvem a controvérsia.

As oscilações existentes no próprio STJ têm revelado diversos julgamentos e entendimentos sobre o tema, sendo que já se observou, por exemplo, que a falta de pagamento da última prestação do contrato poderá, eventualmente, ser considerado o adimplemento substancial como também já se aplicou a teoria em casos em que faltavam cinco prestações para a quitação.

Prevalece, então, a necessidade de avaliação pelo juiz, caso a caso, com o fim de verificar se o aspecto quantitativo do adimplemento se encontra suficientemente observado, o quanto a resolução do contrato poderá ser gravosa à parte inadimplente, não se esquecendo da boa-fé objetiva e a função social do contrato, para que seja aplicado o adimplemento substancial.

Outrossim, é necessário cautela quando da aplicação da teoria, considerando-se a preocupação existente com relação à desconsideração da própria natureza do contrato, sendo que o STJ decidiu recentemente que não é possível a aplicação desta teoria em contratos garantidos por alienação fiduciária de bens. (RESP 1.622.555/MG). Outra preocupação quanto a aplicação reside no fato da necessidade de garantir a segurança jurídica e evitar o enriquecimento sem causa e o abuso de direito.

Conclui-se, portanto, apesar de não regulamentada expressamente, esta teoria tem sido aceita pela jurisprudência, com fundamento nos princípios que regemos contratos civis, sendo certo que sua aplicação deverá ser analisada caso a caso, quando observados os requisitos necessários para tanto.

_________

¹BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de direito, 1993, p.60-61.
²BRASIL, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>
³STF. Recurso Especial nº 1.581.505 – SC (2015/0288713-7). Relator (a): Ministro Antonio Carlos Ferreira. Quarta Turma. Data do Julgamento: 18/08/2016. Data de Registro: 28/09/2016.

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