Jorge Luiz Dantas
Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados
I – Introdução
A Ciência do Direito tem buscado entender e, naquilo que for necessário, normatizar a ininterrupta evolução das relações sociais havidas, sobretudo a partir do século XX. Essa pretensão cientificista foi bem sintetizada por Coelho[1] (2002):
Com o fracasso da experiência de centralização da economia, tentada pela União Soviética e seus países satélites, fica claro que a ciência não consegue controlar as relações sociais. Se o homem, cada vez mais, está dominando cientificamente a natureza, o mesmo domínio não consegue sobre a sociedade.
É sabido que o Direito está sempre alguns passos atrás desta evolução, até porque depende de substrato fático para assimilar as novas relações jurídicas que são criadas, aguardar que conflitos se instalem para, em seguida, via método indutivo, generalizar algumas condutas e normatizá-las.
Também é fato que o Código Civil vigente alterou o paradigma existente no código anterior. Neste sentido, salutar o pensamento de Tepedino[2] (1997):
As relações patrimoniais são funcionalizadas à dignidade da pessoa humana e a valores sociais insculpidos na Constituição de 1988. Fala-se, por isso mesmo, de uma despatrimonialização do direito privado, de modo a bem demarcar a diferença entre o atual sistema em relação àquele de 1916, patrimonialista e individualista.
Esta alteração torna a exegese das normas contidas no Código Civil vigente coadunada à ordem constitucional estabelecida em 1988 e, via de consequência, atrelada às modificações sociais que dela emanam.
Neste ambiente, também é indiscutível que as relações empresariais necessitam de respostas que solucionem seus conflitos com maior celeridade, vez que estes não podem se eternizar, sob pena de travar o mercado, a economia, a arrecadação de impostos, a sociedade e o próprio Estado. Logo, justificável que um instituto originariamente criado para atender as demandas cíveis possa ser alterado para solucionar as demandas empresariais, pois os motivos que os ensejam são outros.
É justamente neste contexto que se insere a distinção a seguir realizada entre a novação prevista no código Civil e aquela inserta na Lei 11.101/05.
A Novação do Código Civil
A novação prevista no Código Civil é modo de extinção de obrigação anterior, que é substituída pela obrigação posterior. É meio de extinção não satisfatório, porquanto em nenhum momento o crédito deixa de existir, mas apenas a relação obrigacional que o representava.
Há, assim, a instalação de uma nova relação obrigacional extintiva da anterior ao mesmo tempo extingue e cria direitos relativos ao crédito nela inserto. Neste sentido, presentes os pressupostos essenciais da novação, as garantias e exceções de ambas as partes outrora constituídas são extintas com a obrigação novada, o que, de certa maneira, explica a sensível diminuição do instituto, que vem sendo substituído pela cessão de crédito, já que nesta as garantias e exceções são transferidas aos cessionários e oponíveis até mesmo pelo devedor.
De modo bastante sucinto, somados aos pressupostos de validade e existência de qualquer negócio jurídico, os requisitos essenciais da novação, segundo lição de Maria Helena Diniz[3], são: (i) existência de uma obrigação anterior, que se extingue com a constituição de uma nova, que a substitui; (ii) criação de uma obrigação nova em substituição à anterior, que se extinguiu; (iii) elemento novo e (iv) intenção inequívoca de novar.
Tem-se, portanto, que a novação prevista no Código Civil é forma de extinção de obrigação, operando-se por meio de alteração objetiva ou subjetiva do conteúdo da obrigação novada que, por esta razão, é extinta. Estabelece-se, indubitavelmente, nova manifestação de vontade das partes no que diz respeito ao cumprimento da obrigação, pelo que, esta substitui a manifestação contida na obrigação anterior.
Há que se pontuar a inexistência de sujeição das partes, vez que, indubitavelmente, a natureza jurídica da novação é contratual. Conquanto indicativo de problema no adimplemento da obrigação anterior, não há como afirmar a existência do pressuposto de crise contratual ou obrigacional precedente.
A novação prevista na Lei 11.101/05
A novação prevista no artigo 59 da Lei de recuperação judicial (Lei 11.101/2005), por seu turno, possui particularidades substanciais a afastá-la do instituto contido no Código Civil. Salutar a reprodução da referida norma:
Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei.
O parágrafo 1º do artigo 50 possui a seguinte redação:
§ 1o Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.
Vê-se que as garantias são mantidas ainda que as obrigações sejam novadas, o que não significa benefício aos credores, mas verdadeira compensação à sujeição que foram submetidos. A novação é imposta pela lei, pois coadunada com seu objetivo maior, que é o da preservação da sociedade empresária (artigo 47 da Lei 11.101/05). A referida sujeição está expressa no artigo 49, assim como o alento aos credores está no parágrafo primeiro deste artigo:
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.
O arcabouço legal contido na Lei de recuperação judicial distingue claramente a novação que ali ocorre com a novação prevista no Código Civil, de modo que, constitui erro grosseiro eriçar questões deste instituto no âmbito da recuperação judicial.
Imperioso sublinhar que a novação ocorrida na recuperação judicial depende da aprovação do plano na assembleia geral de credores. A não aprovação do plano resulta em convolação da recuperação judicial em falência, o que, na prática, revela-se prejudicial aos credores, sobretudo aos quirografários, daí a maior margem de negociações relativas a descontos dos valores devidos e extensão de prazos para pagamentos.
Além disso, a recuperação judicial, no que tange às deliberações e aprovações do plano, é regida pelo princípio majoritário, de modo que, invariavelmente, haverá quem, ainda que não concorde com o plano aprovado, a ele fique submetido.
Assim, pensando nos requisitos essenciais da novação no Código Civil, podemos dizer que na Lei de Recuperação Judicial a intenção de novar fica sensivelmente mitigada e que a obrigação nova não extingue completamente a anterior, posto que as garantias ficam preservadas, salvo expressa liberação prevista no plano.
Retomando o curso no que diz respeito à manutenção das garantias na recuperação judicial, o STJ, em sede de julgamento de Recurso Especial, Resp nº 1.333.349/SP, sob o rito dos recursos repetitivos (artigo 543-C do CPC), fixou a seguinte tese:
A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções, nem tampouco induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos artigos 6º, caput, e 52, III, ou a novação a que se refere o artigo 59, caput, por força do que dispõe o artigo 49, § 1º, todos da Lei 11.101/05.
Resta desta maneira pacificada a matéria no que atine à impossibilidade de extensão aos coobrigados em geral da suspensão de todas as demandas previstas nos artigos 6º, caput, e 52, III, ou a novação a que se refere o artigo 59, caput, por força do que dispõe o artigo 49, § 1º, todos da Lei 11.101/05.
IV – Conclusão
Infere-se, à vista disso, inócua a alegação de novação com vista à exoneração de garantias no bojo do processo recuperacional, pois como demonstrado, não é da mesma novação que está a se tratar na Lei de Recuperação Judicial e Falência.
A atuação do operador do Direito, neste passo, deve se concentrar na orientação e informação ao empresário no que atine à constituição das garantias e suas consequências, vez que, na esfera judicial não existe grande probabilidade de desconstituí-la.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 1, p. 04.
[2] TEPEDINO, Gustavo. 80 anos do Código Civil Brasileiro: um novo Código atenderá às necessidades do país? Revista Del Rey, Belo Horizonte, a. 1, n. 1, dez. 1997. p.17.
[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2. p. 283 – 289.