Um dos pilares jurídicos e de governança corporativa ampla do Mercado de Capitais é o princípio do full and fair disclosure, considerado como o regulador ético para a proteção do grande valor substantivo deste segmento: a Poupança Popular.
Em sua formatação primordial, o Mercado de Capitais opera a partir de uma fonte escassa de recursos de captação, a Poupança Popular, que se traduz como um bem de natureza imaterial, sem um titular específico e sem um dimensionamento prévio. Como bem em si mesmo considerado, a Poupança Popular assume um caráter sui generis. Não cabe dentre as classificações tradicionais, advindas do Direito Civil, posto que não pode ser considerada nem como um bem de uso comum do povo, nem como um bem dominial ou um bem de uso privativo do Estado, primeiramente porque não é um bem público em si mesmo.
Ao mesmo tempo, não se cuida de um bem de natureza privada, posto que insuscetível de assenhoramento por particulares específicos.
Assemelha-se ao meio ambiente, ao bioma, ao Patrimônio Histórico e Artístico. São bens-valores, que transcendem a mera economicidade em sua natureza, mas cuja violação gera consequências econômico-financeiras num número muito grande de pessoas, indeterminável a princípio. Há quem os classifique como bens difusos, mas esta é uma classificação, que embora útil sob o ponto a ser tratado neste artigo, acaba por ser insuficiente para precisar os elementos sob classificação.
Diante da fluidez destes bens específicos, a proteção passa por um conjunto de estruturas e políticas públicas, geralmente calcadas em Poder de Polícia Administrativa, capazes de gerar um certa segurança e previsibilidade de resultados e condutas, a partir dos dados e informações controladas no presente.
Não sem razão, estas políticas públicas primam pela exigência de máxima informação a todos os potenciais evolvidos nos valores protegidos, adotando-se como regra o princípio do full and fair disclosure, traduzido livremente como a informação ampla e adequada para possibilitar um controle difuso.
O Mercado de Capitais é a estrutura na qual o princípio mais se assenta e tem a maior carga de normatividade. Um dos normativos mais relevantes para o Mercado de Capitais é a emblemática e constantemente revista Instrução CVM nº 358.
Tido como uma das normativas mais relevantes do Mercado de Capitais Brasileiro, a Instrução CVM 358 corporifica um conjunto de regras sumamente relevantes para a perfeita polícia administrativa do Mercado de Capitais, gerando um sentido de isonomia informacional aos investidores e evitando que a Poupança Popular seja, de qualquer maneira, solapada por condutas ilícitas, a exemplo de insider trading.
A partir da ideia de fato relevante, divulgado a mercado, tem-se a sensação que a coletividade de investidores e potenciais investidores, a Poupança Popular sob o enfoque subjetivo, está devidamente protegida, permitindo-se a todos igualdade de acesso e oportunidade de investimentos.
Não há um consenso teórico sobre o que seja, como gênero, um fato relevante. Como é comum ocorrer com os instrumentos normativos do mercado de capitais, a regra costuma elencar casos, condutas, tipos legais, criando um extenso rol casuístico que não guarda, a princípio, um substrato ontológico específico que permita a generalização conceitual. Este, por exemplo, é o exato modelo de regulação com o valor mobiliário, base do Mercado de Capitais, cujas primeira linhas normativas, no Securities and Indentures Act, listou um número expressivo de valores. Somente após um longo tempo, os estudiosos e as cortes conseguiram chegar a um conceito genérico, abstrato e de aplicação universal.
Também com relação ao que é fato relevante, a técnica normativa se repete, não possuindo um conceito apriorístico para sua conformação. Também como é da índole desta técnica normativa, os róis legais costumam apresentar uma cláusula aberta de encerramento. No caso específico, fato relevante, além do elenco de condutas, é também todo e qualquer acontecimento que, por índole, função ou circunstância particular, possa criar uma assimetria informacional aos possíveis investidores, gerando um desequilíbrio indesejável em mercado.
Um litígio, uma disputa pode e deve ser tomada como um fato relevante, passível de comunicação a todos que possam ter realizados investimentos na companhia aberta ou aos possíveis investidores. Mormente quando o litígio possa envolver alto valor e questões de alta ponderação para a atividade da companhia.
Na prática, estes litígios de alta sensibilidade não costumam ser decididos no Poder Judiciário, mas em sede arbitral. Isto porque, via de regra, considera-se que o objeto arbitrável e a especialização do Painel Arbitral são mais consentâneos com a relevância da questão para a companhia.
Neste momento, abre-se um paradoxo, uma antinomia: a arbitragem, por regra, é sigilosa. Desde a sua submissão à formação do Painel, quanto à composição do Tribunal, regras do Termo de Arbitragem, andamento e atos procedimentais, bem como as decisões dos árbitros estão albergadas sob o manto de confidencialidade.
A confidencialidade é a regra padrão e os principais regulamentos das Câmaras mais importantes com atuação no país elegem a confidencialidade como um valor a ser observado.
Com isto em peso, a confidencialidade do procedimento arbitral parece colidir, nos casos em que uma das partes é companhia aberta e o objeto arbitrável possa configurar um fato relevante, com o full and fair disclosure, que é um valor fundamental do Mercado de Capitais.
Tanto assim que a instrução CVM 358 sofreu recente alteração para incluir no rol, malgrado a reserva da cláusula aberta, a obrigação de revelar um procedimento arbitral em curso.
Em que pese a disposição regulatória que busca sempre e com zelo preservar a Poupança Popular através do disclosure, entendemos que existe uma série de questionamentos legais sensíveis que a antinomia apresentada nos colocam:
a) A CVM pode submeter um direito disponível da parte que não está sujeita a sua regulação, alterando o objetivo obrigacional? Em outras palavras, o disputante contrário a uma companhia aberta, um procedimento arbitral, que não tenha concordado com a retirada do sigilo pode ver este sigilo violado em razão de um ato administrativo, contrariando a regra legal de autonomia privada?
b) Pode um ato administrativo criar um efeito derrogatório às prestações obrigacionais num contrato acessório, tal como se entende a convenção arbitral?
c) De outro ponto, pode a confidencialidade ser oponível ao Mercado por uma companhia aberta submetida ao procedimento arbitral, escusando-se de revelar fato relevante?
A iniciativa em elencar a arbitragem como um fato relevante foi louvável, mas, em si, não se considerou as possíveis questões antinômicas acima apontadas, que permanecerão sem uma solução efetiva, enquanto a instrução não tiver um controle jurisdicional de sua legalidade ou mesmo de sua constitucionalidade, ante a possível exarcebação de competência pela CVM.
É uma questão que permanece a desafiar o entendimento jurídico, merecendo acompanhamento por especialistas, que o escritório Marcos Martins Advogados oferece a seus clientes e parceiros com excelência e compromisso com os serviços contratados.