Efeitos da Pandemia nas Fusões e Aquisições no Brasil

Giulia Keese Montanhesi
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados

É inegável que a pandemia decorrente da Covid-19 afetou em muito a saúde financeira das empresas e famílias brasileiras. O Brasil atingiu marcos nunca antes vistos em encerramentos permanentes de empresas, que fizeram o setor empresarial ter um olhar mais aguçado sobre o mercado e buscar por recursos que ajudem na sobrevivência, uma dessas alternativas é o mercado de Fusões e Aquisições (M&A).

De acordo com uma matéria da Folha de São Paulo, o IBGE apurou que mais de 1,3 milhões de empresas suspenderam ou encerraram definitivamente suas atividades na primeira quinzena de junho, sendo que 522 mil informaram que a decisão foi tomada em função da pandemia.

Destas, 99% são negócios com até 49 funcionários e 1% é atribuído a empresas consideradas intermediárias (entre 49 e 500 funcionários).

Essa realidade econômica inesperada também atingiu em cheio o mercado de Fusões e Aquisições no Brasil, cujo maior volume de operações envolve pequenas e médias empresas, de forma que esse cenário econômico provocou o retardamento ou até mesmo a suspensão de muitas negociações que estavam em curso para concretização neste ano de 2020.

Operações de compra e venda em estágios avançados também foram afetadas, já que ficou mais difícil de conciliar os interesses das partes envolvidas.

A pandemia e todas as ramificações sociais, políticas e econômico-financeiras provocam a necessidade de ajuste ou readaptação destas condições nos diversos estágios das operações e exigem um olhar crítico às cláusulas de ajuste de preço, de força maior, de compromissos e garantias, dentre várias outras essenciais ao negócio.

Adiante, veremos questões controvertidas dessa temática.

Precificação e Impacto na performance futura/earn-out:

A pandemia impactou profundamente o faturamento, lucro, endividamento e perspectivas futuras das atividades empresariais. Seja para melhor ou para pior, os desencadeamentos econômicos afetaram o valor das empresas cujas participações ou ativos estão ou estavam sendo negociados.

Nesse sentido a elaboração de um estudo prévio apontando o efeito da crise desencadeada na empresa é imprescindível para, então, planejar ou revisitar as condições do preço de compra do contrato de transferência de ações.

Assim, cláusulas que estabeleçam preço fixo e determinado, podem ser alteradas para inclusão de condições de ajuste de preço mais robustas, assinalando determinadas situações específicas, inclusive os efeitos de epidemias e pandemias.

Normalmente estas cláusulas de ajuste são utilizadas para determinar apenas o preço base, sendo o ajuste necessário com fundamento na imprevisibilidade do mercado e passivos e contingências apurados na due dilligence.

A pandemia como fator indissociável a estes quesitos é justo motivo para fortalecimento das condições de ajuste de preço.

De outro lado, atenção redobrada deve ser dada se as partes ajustarem preço variável ou determinável, que ocorre quando o preço será estabelecido em um período de tempo e condicionado a eventos futuros, por metas de performance, crescimento da empresa ou outras obrigações estabelecidas pelas partes.

No cenário atual, a cláusula de earn-out, já muito utilizada para empresas que demonstram relevante potencial de crescimento e geração de valor, tem particular protagonismo na erupção da crise, já que ao mesmo tempo que pode contratualizar metas irreais para a conjuntura brasileira, pode beneficiar o vendedor se a sua atividade indicar crescimento exponencial na crise ou no período pós-pandemia.

Em breve síntese, a cláusula de earn-out é utilizada para vincular parte do preço ao cumprimento de metas, melhoras na performance, dos lucros e indicadores de desempenho, além outras obrigações desejáveis às partes, após o fechamento da operação.

A partir destes elementos objetivos e concretos na apuração do preço, é possível sanar divergências a respeito da avaliação e equilibrar as expectativas das partes.

Portanto, de rigor elaborar ou ajustar a cláusula de earn-out com atenção às novas tendências do mercado e indicadores do cenário econômico, especialmente no âmbito dos setores em ascensão como tecnologia, serviços relacionados a teletrabalho, segurança da informação e segurança cibernética, seguradoras, comércio eletrônico, serviços de streaming, de entrega e fintechs.

Por fim, se o acordo visar formação do preço que é parte fixa e parte variável, tem-se a forma de precificação “híbrida” ou “mista”, que também condicionará parte do valor mediante o cumprimento de metas e desempenho previamente definidos pelas partes.

Neste caso, ambas as “partes” que compõem o preço devem ser analisadas cuidadosamente, para não vincular a compra e venda a uma performance futura que está fadada a retrair em decorrência da crise.

De toda forma, é crucial avaliar caso a caso, interpretando o contrato a partir das circunstâncias específicas de cada negócio e dos impactos da crise no setor correspondente.

Condição para fechamento e obrigações interinas

Acima discutiu-se uma condição crucial à negociação – a precificação -, onde ainda é permitido algum debate para viabilizar o negócio. Nesse item, tratamos uma outra fase da negociação, ainda mais delicada. Quando falamos em condições para fechamento, a rigor, o contrato já fora firmado, mas a transação em si ainda não concluída.

Em um contrato de compra e venda de quotas/ações, ou ativos, a condição para fechamento ou obrigações interinas se situam no “período interino”, isto é, após a assinatura do contrato de compra e venda da participação societária e antes do fechamento, normalmente caracterizado pela transferência das ações ao comprador e pagamento do preço de aquisição ao vendedor.

As condições ou obrigações podem ser várias. Mas especificamente, a pandemia atribui excepcional destaque a cláusula de condução dos negócios, a qual impõe ao vendedor conduzir o negócio durante o período interino nos limites do curso ordinário das operações.

Para a companhia-alvo que foi surpreendida pela pandemia, é quase impossível manter o curso ordinário e outros compromissos, sem prejudicar as atividades. Nesse sentido, fechamento de lojas, tomada de empréstimos, dispensas e outras medidas que fogem ao cotidiano, necessárias para responder a pandemia poderiam ser entendidos como quebra dos compromissos?

Muitas negociações de M&A que ultrapassaram a parte da assinatura e aguardam o fechamento podem vivenciar essa problemática.

De forma geral e através de uma compreensão sistêmica, entendemos que não. O objetivo de cláusulas como esta não é inviabilizar a atividade empresarial e sim determinar que o empresário conduza os negócios buscando sua prosperidade, para concretização do deal nas condições ideais.

A leitura literal e até mesmo equivocada destes termos pode levar a medidas despropositadas e uma má gerência da administração, que deixaria de promover medidas extraordinárias, mas necessárias, para preservar uma cláusula compreendida fora do seu contexto e função.

Declarações e garantias (representations and warranties):

Outro aspecto das obrigações do vendedor — em período interino — diz respeito a reafirmação das declarações e garantias, aqui visto sob a ótica durante a Pandemia.

Uma vez que o comprador se baseia nas informações prestadas pelo vendedor antes e durante a due diligence para tomar sua decisão quanto à aquisição da empresa e os pormenores da transação, é imprescindível que haja transparência e confiabilidade das informações ao interessado.

Nesse sentido, as cláusulas pro-sandbagging nos contratos de M&A possuem a função de permitir que o receptor das informações, via de regra o comprador, seja indenizado por perdas resultantes de erros, inconsistências e inexatidões nas representações e garantias prestadas pelo vendedor, em qualquer momento do negócio.

Porém, como ficam as declarações com o avanço da pandemia? É necessário reafirmar as declarações e garantias pela mudança repentina e abrupta ou deverá o vendedor arcar com indenização por eventuais perdas decorrentes de inconsistências nas declarações prestadas ao comprador?

Nesse caso, entendemos que as garantias e declarações são tão elementares ao preço e condições da aquisição que, verificada situação excepcional que mude por completo os rumos da companhia, as garantias devem ser revisitadas, para garantir a segurança do vendedor em matéria de responsabilização financeira por eventuais danos e prejuízos.

Como bem sabemos, períodos de crise fazem com que credores acionem seus devedores, judicialmente, na tentativa de aumentar seu próprio caixa, podendo resultar no rápido escalonamento do passivo de muitas empresas.

Novamente, a análise dependerá do caso concreto, uma vez que diversos ramos e serviços não foram afetados tão drasticamente, caso em que as declarações destas empresas serão pouco atingidas, quando não inalteradas.

Cláusula de Efeito Adverso Relevante ou Material Adverse Change – MAC

Muito utilizadas na prática para discutir a alocação dos riscos do negócio, as cláusulas de efeito adverso relevante ou MAC, como também são conhecidas, dizem respeito a qualquer fato, mudança ou evento que tenha efeito nos negócios, condições financeiras, resultados da empresa ou até nas condições do vendedor ou demais acionistas.

Entende-se que todos as condições para a realização do negócio foram obtidas com base em determinadas premissas econômico-financeiras que, se modificadas substancialmente, poderiam descaracterizar o negócio, a vontade das partes, assim como diminuir-lhe o preço.

Nas operações brasileiras, as cláusulas seguem a sistemática da teoria da força maior no Código Civil, de forma que o vendedor não deverá se responsabilizar por prejuízos comprovadamente oriundos de natureza extraordinária e aqueles mencionados na cláusula.

Entretanto, a alocação destes riscos dependerá da extensão da cláusula, da sua redação e exceções. O conceito “Efeito Adverso Relevante” é amplo e abstrato, cabendo às partes elencar as situações que consideram relevantes para sua caracterização, como mudança nas condições econômicas, políticas, guerras, desastres naturais ou terrorismo, dentre outros.

O detalhamento dará menor margem para interpretação em um eventual litígio.

Na doutrina majoritária e jurisprudência mais atual, epidemias e pandemias são eventos imprevisíveis, inevitáveis e se constituem casos fortuitos ou força maior nas relações comerciais e contratuais, assim como podem configurar efeito adverso relevante, sendo imperioso, contudo, a demonstração do nexo de causalidade entre a crise e o efeito provocado no negócio, seja ele positivo ou negativo.

Portanto, para que a pandemia seja abrangida por essa cláusula, é importante apresentar detalhadamente e concretamente como os efeitos sociais e econômicos dela decorrentes afetam o mercado que a empresa opera, especialmente quanto ao impacto na saúde econômica, ativos, passivos, atividade, imagem, situação jurídica, etc.

Em síntese, a superveniência da pandemia no cenário de M&A tem o condão de originar diversas discussões com bases nestas cláusulas, sob a ideia de imprevisibilidade.

Portanto, ainda que não tenhamos decisões ou entendimentos consolidados de tribunais e cortes arbitrais a respeito destes assuntos polêmicos, devemos consolidar todas as hipóteses nas cláusulas contratuais do contrato de compra e venda de ações, para mitigação de interpretações equivocadas ou dissonantes entre as partes.

Nada obstante, o cenário incerto não afugentou os banqueiros e investidores, que veem sinais de recuperação e esperam mais acordos nos próximos meses, principalmente em Startups e pelo fato de que muitas empresas terão dificuldade de se reerguerem sozinhas, abraçando a compra e venda de participação societária como forma de injeção de capital de reestruturação, de compartilhamento de modelo de negócio, troca de experiências de gestão e reinserção no mercado competitivo.

Dúvidas? Fale com nossos advogados e receba orientações.

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