Giulia Keese Montanhesi
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados
Foi publicada no Diário Oficial, em 29 de abril de 2020, a Medida Provisória nº. 959, que tratou de dois assuntos nada semelhantes: o pagamento de benefícios emergenciais e a prorrogação do vacatio legis da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (“LGPD” ou Lei nº 13.709/2018), adiando a entrada em vigor de referida Lei para 03 de maio de 2021.
A exposição de motivos da Medida Provisória nº. 959 justifica o adiamento por “uma possível incapacidade de parcela da sociedade (em implementar a LGPD) em razão dos impactos econômicos e sociais da crise provocada pela pandemia do Coronavírus” e ainda, que a urgência e relevância da Medida Provisória decorrem da necessidade de “garantir a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados de modo ordenado e sem insegurança jurídica”.
Apesar de dita urgência na regulamentação da proteção e da privacidade de dados pessoais no Brasil, que vem sendo discutida há mais de 10 anos, nota-se que, o Governo Federal já havia adiado a entrada em vigor da LGPD por duas vezes, sendo que ela estava prevista para vigorar a partir de agosto deste ano de 2020. Assim, o futuro dos dados pessoais no Brasil continua incerto com a edição da MP nº. 959/2020.
A prorrogação neste período de crise já era esperada, especialmente em razão do Projeto de Lei nº. 1179/2020, de autoria do senador Antônio Anastasia, que foi aprovada no Senado e pende de votação na Câmara dos Deputados. Caso aprovado, o projeto adiaria a vigência da LGPD para 01 de janeiro de 2021, e a aplicação de sanções administrativas para 01 de agosto de 2021 – esta última alteração, também já era prevista já que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada em dezembro de 2018, sequer foi constituída pelo Executivo (e não temos qualquer previsão para sua estruturação, funcionamento e operacionalização).
A publicação da Medida Provisória portanto, surpreendeu a comunidade jurídica, que atravessou o andamento do Projeto de Lei nº. 1179/2020, conforme exposto acima. Além disso, a Medida tratou de dois temas que não guardam qualquer afinidade entre si (benefícios emergenciais e LGPD).
A despeito das justificações levantadas, este adiamento provoca o escalonamento da insegurança jurídica, ainda mais durante a pandemia do Coronavírus, que traz desafios ainda maiores em matéria de proteção de dados e privacidade, principalmente no setor da Saúde.
Diversas operadoras de telefonia estão compartilhando dados de geolocalização de seus usuários com o Governo Federal, Estados e Municípios para avaliar o isolamento e combater a pandemia, assim como diversas instituições passaram a divulgar registros médicos e dados de saúde para diversas finalidades.
Alguns serviços ainda estão funcionando devido às tecnologias, ao home office e às plataformas integradas. Nada obstante, os ataques cibernéticos cresceram e os sequestros de dados se multiplicaram.
O ponto central é que todas as operações públicas e privadas que estão demandando dados pessoais não estão sob uma legislação específica e a manipulação destes está sendo feita sem um grau de proteção minimamente adequado e, por vezes, indevidamente, sob a perspectiva da própria postergação de fiscalizações e sanções administrativas debatida pelos parlamentares.
Outrossim, pelas disposições da GDPR, a União Europeia se abstém de realizar transações comerciais ou transferências internacionais de dados com países que não possuam grau elevado ou compatível com a sua normativa, em matéria de proteção de dados pessoais e privacidade.
Além do Brasil ser privado de informações relevantíssimas relativas às ações e políticas públicas adotadas por países bem sucedidos nesta crise, este requisito obsta quase por completo o estabelecimento de relações comerciais com empresas e países europeus.
O Brasil há muito vinha perdendo protagonismo no comércio internacional por não estar no patamar mínimo requerido. Com a LGPD, estava próximo de alcançar um grau adequado de proteção de dados (ainda que apenas formalmente) e retomar acordos comerciais relevantes, além de promover maiores trocas de dados substanciais de outras naturezas (saúde, economia, meio ambiente), as quais poderiam se mostrar decisivas na luta contra o Covid-19.
À toda evidência, constata-se que a postergação da vigência da LGPD influenciará negativamente na balança comercial brasileira.
Importa ressaltar, contudo, que o prazo trazido pela Medida Provisória não é definitivo. A Medida Provisória, por seu caráter transitório e emergencial, tem validade de, no máximo, de 120 dias e, caso não seja convertida em lei pelo Congresso nesse período, perderá seus efeitos, retornando a lei vigorar a partir de 16 de agosto de 2020 ou adquirindo novo prazo, a depender da aprovação dos Projetos de Lei que ainda tramitam nas casas parlamentares.
De toda forma, ainda que a postergação de sua vigência oportunize às empresas mais um ano para buscar adequação e conformidade com os dispositivos da LGPD, devem ter em mente que a nova realidade já se faz presente, podendo a responsabilização por atos violadores aos direitos da personalidade e à privacidade serem amparados pela legislação esparsa, isto é, pela Constituição Federal, Código de Defesa do Consumidor e pelo Marco Civil da Internet.
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