Aline Pardi Ribeiro
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados
Em um cenário de crise econômica e escândalos de corrupção é comum encontrar notícias veiculadas na mídia sobre aparecimento de trusts constituídos em paraísos fiscais pertencentes a políticos ou grandes empresários, não declarados à receita federal brasileira. A partir de notícias como essas, inicia-se um processo de entendimento sobre a utilização e finalidade dos trusts apenas como meio de ocultar patrimônio, de evasão fiscal, de crime de lavagem de dinheiro e até de fraude contra credores.
Neste sentido, a mídia tende a distorcer o conceito de trust, gerando confusão sobre o tema à população em geral, que passa a identifica-lo como um mecanismo apenas de utilidade fraudulenta. Entretanto, é um entendimento errôneo e completamente distorcido. O conceito do trust, de forma simples, é de um instituto criado para administrar os bens que eram de propriedade do sujeito que constituiu o trust, que passará, por sua vez, a ser o proprietário desses bens, pelo período de tempo para o qual foi constituído, em favor de um beneficiário, podendo ser o antigo proprietário ou outras pessoas indicadas na escritura do trust.
Segundo o ilustre Arnoldo Wald, o trust é
[…] a transferência da propriedade de bens a um administrador, por um determinado período de tempo, em certas condições, para que o patrimônio seja gerido e reverta em favor de um beneficiário, que pode, inclusive, ser o proprietário original[1].
O trust é, na maioria dos países, constituído através de uma escritura, estruturado de maneira a existir três posições na relação jurídica: a do instituidor (chamado de “trustor”), daquele que recebe o patrimônio como fiduciário (chamado de “trustee”) e a do beneficiário (chamado de “ultimate beneficial owner” ou “UBO”).
Vale salientar que na doutrina brasileira há uma discussão acerca da utilização do trust, provavelmente advinda da dificuldade de entendimento do instituto perante o sistema da Civil Law, sobre a ótica do direito de propriedade, enquanto este instituto é tratado e defendido facilmente pelo sistema da Commom Law[2]. Os juristas brasileiros entendem a propriedade como una e indissociável, de modo que ninguém poderia dar em confiança à outro propriedade de um bem para seu benefício próprio, já que após a transferência da propriedade, o cedente não teria direito algum sobre o bem que não é mais seu. Desta forma, a existência de um beneficiário em favor de quem os bens serão administrados, que seria o real proprietário dos bens, não é admitida perante a legislação e doutrina brasileiras.
No trust há um desmembramento entre a propriedade legal e a propriedade beneficiária, prevendo a possibilidade de que mais de uma pessoa detenha direitos sobre aqueles bens. Neste sentido, a legislação brasileira e da maioria dos países de Civil Law não permitem o desmembramento da propriedade, portanto, não admitem o trust em suas regulações.
Em relação à responsabilidade patrimonial prevista no Novo Código de Processo Civil Brasileiro, conforme artigo 789 (antigo 591), o devedor deve responder com todos os seus bens, presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo restrições estabelecidas em lei. Desta forma, a lei processual brasileira prevê a responsabilidade do devedor perante as obrigações por ele contraídas de modo que responderá com todos os seus bens, ou seja, pode-se entender, inclusive, que o patrimônio do trust também poderá ser objeto de tentativa de expropriação caso o devedor seja o beneficiário final do patrimônio gerido pelo trust. A partir da criação do trust, o trustor deixa de deter a propriedade dos bens, passando apenas a ser o beneficiário final, fazendo com que os bens transferidos ao trust deixem de constar em seu patrimônio pessoal.
Além da figura do trust, no Panamá existe a fundación de interés privado, chamada de fundação de interesse privado, um instrumento de planificação patrimonial que pode ser utilizado para manter diversos ativos, tais como empresas, contas bancárias, contas de investimento, bens imóveis, fideicomissos ou qualquer outro tipo de ativo: real, tangíveis ou intangíveis. O capital inicial da fundação deverá ser de, no mínimo, US$ 10.000,00 (dez mil dólares) e deverá ser definido o nome para a fundação, seu domicílio, os membros do Conselho, um agente local (advogado) que deverá levar o ato para registro perante as autoridades locais, seu objetivo social, duração, dentre outros itens característicos de uma sociedade comum. A fundação poderá ser constituída por uma ou mais pessoais físicas e/ou jurídicas e seu registro é realizado rapidamente. Desta maneira, transferindo os bens para a fundação, o fundador determinará em seu estatuto, como, quando e quem receberá o patrimônio que um dia foi dele e agora pertence à fundação, após o seu falecimento ou em qualquer outro momento determinado por ele no estatuto.
De maneira similar ao trust, na fundação também há a separação da propriedade entre o fundador e os bens transferidos a ela, os quais serão administrados pelo conselho da fundação.
Ambos institutos podem ser usados para proteção patrimonial, com a finalidade de separar o patrimônio de uma pessoa física, por exemplo, ou com finalidade de planejamento sucessório, para definição de como serão divididos os bens entre seus sucessores antes mesmo do falecimento do proprietário inicial. As transferências de bens com a finalidade de realização de planejamento sucessório são totalmente amparadas pela legislação, apenas no caso da eventual realização de transferência dos bens com o fulcro de evitar constrição judicial e pagamento de obrigações a terceiros é que poderão ser declaradas ineficazes pelo poder judiciário, nos termos do artigo 792 do Novo Código de Processo Civil Brasileiro.
É totalmente válida a utilização de institutos como a fundação e o trust, previstos em lei nas jurisdições em que são aplicáveis, com o fulcro de proporcionar aos usuários a segurança jurídica necessária para a realização de um planejamento sucessório envolvendo seus bens, inclusive aqueles que estão no exterior e lá permanecerão, visto que a legislação brasileira, apesar de prever o fundo de investimento imobiliário e o fundo de investimento em participações, não dispõe sobre um instituto societário para o qual poderia ser transferida a propriedade em fidúcia e ainda regula-la para que a administre após o falecimento do seu instituidor. Perante as lacunas em nossa legislação é que se vê necessidade de buscar mecanismos estrangeiros para utilização em casos concretos para benefício dos indivíduos, de forma legal, declarada e limpa, sem qualquer relação com a ocultação de patrimônio ou fraude contra credores.
[1] WALD, Arnoldo. Algumas considerações a respeito da utilização do “trust” no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 99, p. 109, 1995.
[2] TERPINS, Nicole Mattar Haddad. A Natureza Jurídica dos Fundos de Investimento Imobiliário. 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado – apresentação ao Departamento de Direito Comercial). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. p. 32.