Vanessa Salem Eid
Advogada do escritório Marcos Martins Advogados
Em julho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADPF 828, determinou a suspensão de ordens ou medidas de desocupação de áreas que estivessem habitadas em data anterior à 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da pandemia do COVID-19.
A suspensão não é ampla e nem genérica, mas a decisão do STF especifica que deve recair sobre “imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis”.
O mesmo vale para liminares deferidas visando despejo de locatários em condição de vulnerabilidade e que estejam habitando imóveis residenciais. Todavia, cumpre salientar que o conceito de vulnerabilidade precisa necessariamente ser objeto de análise individual, ou seja, varia de acordo com o caso concreto.
O prazo máximo fixado para tais suspensões é de seis meses a contar da decisão acima mencionada e traz três situações para sua aplicação:
- para ocupações anteriores à pandemia (20 de março de 2020, nos termos do Decreto Legislativo nº 6/2020;
- ocupações posteriores à pandemia e que tenham como objeto moradia para populações vulneráveis, o Poder Público poderá evitar a consolidação, desde que sejam disponibilizados abrigos públicos ou seja assegurada outra forma de moradia adequada às pessoas que foram despejadas;
- com relação ao despejo liminar, a suspensão também será de seis meses, de modo que não poderá ocorrer a concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária, nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável.
A decisão do STF se destina à tutela dos direitos à moradia e à saúde de pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente da pandemia e, assim sendo, o Tribunal de Justiça de São Paulo seguiu a mesma linha, decidindo pela suspensão de algumas modalidades de ações de despejo, reintegração de posse ou desocupações e remoções forçadas, por meio do Comunicado Conjunto nº 1338/2021:
- Ocupações anteriores à pandemia, com início fixado em 20/03/2020, ficarão suspensas por 6 meses, a contar da decisão;
- Ocupações posteriores à pandemia (data após 20/03/2020) não serão beneficiadas com a suspensão. Ressaltando-se que o Poder Público é responsável pela destinação das famílias em situação de vulnerabilidade para abrigos públicos ou similares, garantindo o direito à moradia, previsto no artigo 6º da Constituição Federal.
Atos semelhantes foram adotados em diversos estados. Em Pernambuco, por exemplo, foi sancionada a Lei 17.400/21, que suspendeu o cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse, despejos ou remoções determinadas ou não pelo Judiciário até o fim da pandemia.
A nova lei, que ficou conhecida como “Despejo Zero”, vigorá até o fim da vigência da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) e também determina que não poderão ser realizadas reintegrações de posse, despejos ou remoções de pessoas que estão no exercício de ocupação desde março de 2020.
Em 22 de outubro deste ano, a 15ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP suspendeu reintegração de posse de modo forçado contra uma família[1]. O fundamento do acórdão foi exatamente a decisão do STF mencionada no início do presente artigo, a qual impede despejos na pandemia.
Para o Tribunal de Justiça de São Paulo, o acórdão busca resguardar os “direitos das famílias em permanecer no lugar em que estão ante a situação pandêmica que acomete o mundo inteiro”.
A decisão agravada foi proferida nos autos de uma ação possessória que tramita na 4ª Vara Cível do Foro Regional Lapa da Comarca de São Paulo, na qual foi determinada a reintegração da posse forçada sem observar a ocupação do imóvel ocorrida anteriormente à decretação do Estado de Emergência.
Há quem entenda que a determinação da suspensão geraria um ciclo vicioso, pois agrava a situação dos proprietários e dos locadores, impactando diretamente não apenas na regularização do imóvel, como na fonte de renda daquele que detém o direito individual de propriedade. Por outro lado, os senadores Paim e Jean Paul Prates se posicionaram não apenas a favor da medida, como contra o veto presidencial, sustentando que “é uma questão humanitária: não deixar as pessoas expostas ao vírus na rua” e que “é um precedente importante para outras situações de calamidade que iremos viver. E, portanto, é muito importante para essas famílias
Apesar de recente e de trazer questionamentos acerca de se estar privilegiando a tutela coletiva do direito à moradia em detrimento ao direito individual de propriedade, a matéria é considerada pacífica com relação à suspensão de despejos programados para ocorrer durante a pandemia para pessoas que estejam ocupando imóveis em data anterior a 20 de março de 2020. Considerando que o prazo de suspensão está prestes a se encerrar estamos antenados com relação aos próximos passos da medida, a fim de que cheguemos à conclusão a respeito dessa proteção ser excepcional ou uma tendência futura para eventuais crises.
De mais a mais, concluímos que o ideal é que a situação individual de cada proprietário e possuidor seja analisada de forma criteriosa a fim de que a melhor decisão seja proferida com base na situação de crise coletiva em que o país se encontra para ambos os lados.
Vanessa Salem Eid é advogada com atuação em Direito Civil e Empresarial do escritório Marcos Martins Advogados.
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[1] “AGRAVO DE INSTRUMENTO interposto contra r. decisão que determinou a reintegração de posse insurgência dos agravantes que alegam não ter havido a demarcação necessária quanto ao perímetro a ser reintegrado oficial de justiça suscita a questão, apontando ainda que no imóvel residem além dos agravantes outras 8 famílias. Possibilidade – decisão proferida nos autos da ADPF828/DF pelo E. STF perfeitamente aplicável ao caso tendo em vista buscar resguardar os direitos das famílias em permanecer no lugar em que estão ante a situação pandêmica que acomete o mundo inteiro ocupação realizada antes do marco temporal estabelecida pela referida decisão requisitos cumpridos para suspensão da reintegração questão cercado perímetro a ser demarcado deve ser conhecida pela juíza de primeiro grau, sob risco de supressão – decisão reformada recurso provido na parte conhecida. Agravo de Instrumento nº 2216203-87.2021.8.26.0000, da Comarca de São Paulo.”